MAURICE MERLEAU-PONTY – Conversas: 1948

O mundo percebido e o mundo da ciência

O mundo que percebemos e que nos parece o mais evidente não passa de uma falsa aparência. De fato, depois dos esforços da ciência moderna, chegou-se à conclusão de que, sob os fenômenos mais corriqueiros, repousa um emaranhado de corpúsculos e ondas eletro-magnéticas de alta complexidade. Isto demonstra que o ser humano, se quiser compreender a realidade, deve remontar às tarefas de suas pesquisas e de sua inteligência (DESCARTES).

Contudo, basta a ciência para explicar todas as coisas? Não, na medida em que as teorias científicas nos oferecem apenas cifras da realidade, não esgotando seus mistérios. Dessa forma, continuam válidos os esforços dos crentes, dos artistas e dos poetas, em seus misteres para, de maneira própria, também expressarem as múltiplas facetas da realidade, como eles a vêem.

Exploração do mundo percebido – O Espaço

O pensamento moderno inverte o senso comum clássico de investigação das coisas e para dar só um exemplo, o espaço não é mais entendido como lugar estático em que se situam os objetos, mas, pela teorias atuais, a forma e o conteúdo dos objetos interage com o espaço circundante. Isto se confirma também através da pintura moderna (Cézanne), na qual forma, conteúdo e colorido se dão simultaneamente. Sentir o espaço com o coração, eis a perspectiva pontual da cultura moderna!

Exploração do mundo percebido – As coisas sensíveis

Cada coisa percebida é um sistema de qualidades oferecidas aos diferentes sentidos e reunidas por um ato de síntese intelectual. É assim, p.ex, que a percepção do limão é o conjunto de forma, cor, sabor e reação que as diferentes qualidades exercem sobre nosso subconsciente. Na continuidade, cada qualidade sensível dá origem a diferentes reações analógicas, o que dá origem à diferentes espécies de percepções (virtuais, possíveis ou simplesmente imaginárias).

Exploração do mundo percebido – A animalidade

A diferença entre a percepção clássica do mundo que nos cerca e a moderna consiste no envolvimento do olhar humano, dando forma peculiar a tudo que se percebe. Ora, isto significa dar uma atenção especial à forma com que os primitivos, as crianças, os loucos e os doentes vêem a sua realidade. Superando uma atitude clássica de indiferença com os ‘anormais’, percebe-se que o preconceito contra eles é apenas superficial, na medida em que há diferentes formas de captação da realidade, todas válidas, a partir de cada percepção engajada em seu habitat.

É dessa forma então que qualquer fenômeno físico pode passar a ser considerado como ‘vital’, pelas impressões mutantes que lhe podem ser agregadas.

O Homem visto de Fora

O dualismo cartesiano dividiu o ser humano em duas realidades distintas, o corpo e o pensamento, sendo este considerado autônomo e espiritual. Contudo, suas relações são próximas, havendo entre eles uma interação recíproca, pois, em qualquer manifestação (vg a raiva), a reação é corporal, mas sua realidade é, na verdade, pensamento (consciência).

Ainda mais, a consciência de nós mesmos só surge depois de termo-la vivenciada com os outros! O bebê, vendo as reações dos outros, toma consciência de si mesmo. Ora, isto nos impõe o fato de que nosso espírito é tributário do ambiente que o cerca, só se realizando na consonância de suas relações externas. Por conseqüência, não havendo indivíduos ou pessoas isoladas de seu ambiente, nosso papel deve ser o desempenhar um trabalho conjunto pela superação dos eternos problemas que afligem os seres humanos isolados.

A Arte e o Mundo Percebido

O que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer. Isto ocorre preeminentemente com a arte, cuja figuração só pode ser compreendida se for vista considerando a totalidade de seus detalhes ou aspectos.

Dessa forma a arte deve ser olhada não apenas como um conjunto de detalhes, mas como um conjunto que lhe dá sentido como ‘fato pictural’. É, então um mundo por si mesmo, original e irrepetível. O mesmo ocorre com a literatura, a poesia, a música.

Mundo Clássico e Mundo Moderno

Estamos, pois, diante de duas perspectivas de conhecimento: de um lado, uma razão esclarecida que não duvida de seu poder de esgotar todos os mistérios; de outro, um conhecimento incerto e subtil que nos vem do reconhecimento do valor da arte, do subjetivo, do mito, da crença. De um lado o dogmatismo, do outro a ambigüidade e a incompletude.

É dessa forma que o mundo moderno é sempre aquele das coisas inacabadas, perdido na variação semântica das palavras. Não obstante, tal problema também afetou a cultura clássica, como nos dão exemplo Leonardo da Vinci, Balzac, como se fosse da própria natureza da verdade o revelar-se homeopaticamente, por gotas e insinuações.